sexta-feira, 29 de julho de 2011

"Ela corre risco de vida"


Fico pensando em autores antigos, que levavam anos ou décadas escrevendo e reescrevendo suas obras, até que as dessem a público. Muitos autores bons ou geniais não lançavam mais que um livro ou outro durante toda a vida. E, porque era assim, eles deveriam caprichar bastante... É como se eles só tivessem uma bala ou duas no tambor do revólver e, por isso, caprichavam na pontaria...

Mas os autores de hoje não costumam recorrer a longas reflexões, a longos cuidados... Às vezes, uma expressão correta e elegante, que foi usada por séculos ou milênios, desaparece do dia para a noite, simplesmente porque alguém que mal refletiu um segundo sequer concluiu: Isto está errado, vou corrigir. E corrige para a forma errada. Se estamos falando de uma pessoa influente, a forma corrigida é copiada à exaustão e substitui a antiga... 

O motivo deste post é que tenho ouvido e lido muito a expressão correr risco de morte ultimamente. Tentemos entender...


Risco de morte

A preposição de pode nos oferecer várias ideias: posse, relação, etc.

Se dizemos a casa de João, a preposição de nos dá a ideia de posse. A casa pertence a João. Mas, se dizemos tábua de carne, não queremos dizer, obviamente, que a tábua pertence à carne! Neste último caso, a preposição de nos dá a ideia de relação. A tábua, de algum modo, está relacionada à carne.

Sendo assim, se dizemos que uma pessoa corre risco de morte, o que estamos dizendo? Que o risco pertence à morte?! De modo algum! Seria ridículo entendermos que a preposição de, nesse caso, nos dá a ideia de posse.

Mas poderíamos entender que a preposição de, nesse caso, nos dá a ideia de relação? Tampouco. Não faz sentido dizer que há um risco relacionado à morte de alguém, porque a morte de todos já está garantida; é coisa certa (a menos que estejamos falando de algum highlander ou membro da Academia Brasileira de Letras, é claro! Os membros da Academia, assim como os highlanders, são
imortais...).

Talvez alguém diga que correr risco de morte é o mesmo que correr um risco mortal. Puro engano. Seria o mesmo que dizer que tábua de carne equivale a tábua carnal... Não confundamos locução adjetiva com complemento nominal.

Só faz sentido dizer risco de morte quando queremos dizer possibilidade de morte. Exemplo: A possibilidade (ou o risco) de morte é maior na medida em que uma doença se agrava.


Risco de vida

Mas, se dizemos que uma pessoa corre risco de vida, o que estamos dizendo? A preposição de, como no caso anterior, tampouco nos dá a ideia de posse. Não queremos dizer que a vida é dona do risco! Mas, agora sim, a ideia de relação faz sentido; porque, agora sim, queremos dizer que há um risco relacionado à vida de alguém, seja porque essa pessoa sofreu um acidente, seja porque passou por um grande perigo, etc.

Veja: Há uma música da década de 80 que diz: Meu prazer virou risco de vida. Não faria muito sentido dizer que Meu prazer virou risco de morte...

Tentemos entender melhor. Se substituíssemos o substantivo risco pelo verbo arriscar, diríamos que alguém arrisca a própria morte ou que alguém arrisca a própria vida ao passar por um grande perigo?

Não sei você, meu caro leitor, mas de minha parte, enquanto algumas pessoas arriscam a própria vida e a perdem, eu adoraria arriscar minha própria morte e perdê-la... Garanto a você que ela não me faria falta e que eu poderia continuar vivendo sem ela perfeitamente!


Risco de morrer

Muitas pessoas, entretanto, acabam optando por uma saída estratégica pela esquerda, isto é, não adotam nenhuma das duas expressões anteriores, mas, sim, correr risco de morrer. É o caso do Jornal Nacional. (Enquanto a Rede Globo parece ter adotado a expressão correr risco de morrer, a Record parece ter adotado a expressão correr risco de morte. Repare. Preste atenção. Os grandes jornais costumam ter os seus manuais de estilo e redação.)

Dia 30 de maio, por exemplo, o William Bonner disse Ela não corre risco de morrer. Certamente essa expressão faz sentido e está correta, mas, perguntemos, ela é elegante como correr risco de vida?

Talvez alguém diga que isto tudo se trata de evolução do idioma. Mas, se estivéssemos falando de roupas, eu diria que estamos trocando algumas de nossas melhores peças por farrapos, tudo em nome de novidades que nem sempre são sinônimos de evolução ou melhoria.


Moral da história? Está difícil trocar os autores antigos pelos novos... E já disseram outro dia, na TV, que nossas referências na escrita estão ficando velhas.


Um conselho. Se você já usou a expressão correr risco de morte ou correr risco de morrer em posts anteriores, não se desespere. Garanto a você que todos os seus leitores entenderam perfeitamente o que você quis dizer. Não é preciso revisar cada um de seus 500 posts já publicados! Mas reflita sobre isto que lhe digo hoje e pense se, daqui para frente, você não gostaria de manter a velha e boa, correta e elegante expressão correr risco de vida...


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