segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Poema em linha reta, de Fernando Pessoa

[Que tem a ver com o post "Perfeita Perfeição"]


Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

                             Álvaro de Campos

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Perfeita Perfeição

TEXTO DA JÉSSICA

Eu sei que não sou perfeito, mas no final do dia quem é?
Você queria alguém perfeito. Bom, tudo bem.
Mas você pode me dizer quem é? ♪

Bruno Mars - Who is

Ninguém é tão feio como na foto da identidade, tão bonito como na foto do Orkut, tão feliz quanto no Facebook, tão simpático e popular como no Twitter e nem tão ocupado como no MSN. E muito menos tão otimista quanto no blog. Então não quero fingir. Não quero esconder. Essa SOU EU. Talvez a parte mais sombria, mais escura, mais pessimista, mais escondida. Porém não deixa de fazer parte de mim. Afinal, ninguém é tão perfeito quanto parece. Comigo não seria diferente!


COMENTÁRIO
(Comento o texto da Jéssica abaixo, por motivos óbvios.)

Imagine alguém imperfeito. Imagine que essa pessoa imperfeita tem 99% de defeitos e 1% de qualidades. Imagine que essa pessoa é real, que ela anda por aí. Imagine que ela se tornou um ator, um político, um empresário... Imagine que ela se tornou a pessoa em quem você confia, a pessoa com quem você divide segredos... Para você, essa pessoa imperfeita é completamente perfeita, simplesmente porque ela não se mostra por inteiro. Para o mundo, ela revela apenas 1% de sua verdadeira natureza, justamente aquele 1% que é só qualidades.... Essa é a "pessoa perfeita" possível...

É claro que podemos encontrar uma "pessoa perfeita" que é 50% defeitos e 50% qualidades... Para Lênin, bastava que alguém tivesse pelo menos 10% de qualidades... Pois é! Parece que Lênin era bastante prático ou bastante realista. É muitíssimo fácil imaginar uma pessoa perfeita e sonhar com ela o tempo todo, desde que não a busquemos na realidade, no dia-a-dia...

Alguém pode ser perfeito um segundo, um minuto, um final de semana inteiro. Um namorado pode ser perfeito um mês, um semestre, um ano... Mas ele não pode ser perfeito para sempre. As pessoas ideais (ou perfeitas) não duram para sempre se convivemos com elas todos os dias... As pessoas ideais são sempre aquelas que não conhecemos bem.... Aquelas que estiveram em nossas vidas apenas por breve tempo... Aquelas que estiveram a nosso lado nos dias de alegria e que agora, nos tempos de dor, não vemos a nosso lado....

Em poucas palavras, as pessoas perfeitas são aquelas que imaginamos, ou aquelas que "nos enganam" daquela maneira como expliquei no primeiro parágrafo deste meu comentário. Mas moralmente temos esta questão: Mostrar-se por inteiro é ser sincero? Certamente. Mas é conveniente fazê-lo? Geralmente não. Vejamos abaixo um exemplo...

Pensemos na maneira como agimos para sermos educados. Ser agradável (ou educado) significa que não devemos dizer tudo o que pensamos, ou seja, que devemos selecionar nossos melhores pensamentos ou aqueles que possam ser os mais agradáveis, deixando à parte os demais. Essa maneira de agir também é um modo de não nos mostrarmos 100%. Pode ser que nossos pensamentos bons sejam 90% do total, mas também pode ser que sejam apenas 1%... Não somos políticos em busca de votos, nem atores em busca de fama, nem nada disso... mas somos pessoas que temos os nossos amigos, parentes, namorados ou namoradas, etc. Geralmente começamos mostrando o melhor de nós, talvez imaginando que conseguiremos fazer isso o tempo todo e pelo resto da vida. Puro engano. O dia-a-dia, a convivência, o trato diário obrigatório é como luz sobre os recantos de nossa alma: acabamos nos revelando por inteiro, especialmente nos piores momentos, nas épocas de crise, nas brigas, nos litígios, nos lapsos...

Dizem que o amor de Romeu e Julieta foi perfeito, simplesmente porque eles não tiveram tempo de brigar... Pois é! Pode ser uma piada, mas essa piada tem os pés na realidade. Eles morreram, não tiveram uma convivência longa, o trato diário não existiu para eles...

Os contos de fadas são parecidos. Quando os amantes finalmente conseguem ficar juntos, a história acaba. Eles viveram felizes para sempre? Provavelmente sim, mas não da maneira como viveram antes, nos primeiros tempos do romance. Com o tempo nos revelamos por completo, ainda que sejamos 99% qualidades e 1% defeitos...

E geralmente basta que tenhamos 1% de defeitos para que os outros ignorem os nossos 99% de qualidades... Porque "os outros" imaginam um  ser perfeito tão utópico que só pode existir fora da realidade... Até que um dia "os outros" se cansam de procurar por alguém "perfeito" e aceitam (a contragosto) alguém possível... Esse "alguém possível" pode ser um namorado, um marido, uma sociedade com outra pessoa, etc.

A verdade, a triste verdade, é que não vivemos um segundo sequer fora do mundo real.... E as pessoas possíveis ou são as pessoas perfeitas que procuramos ou não são nada...

Mas, se por acaso formos 99% qualidades e 1% defeitos, de que isso nos vale? A outra pessoa (amigo, namorado, familiar...) espera de nós alguém 100% perfeito. A longo prazo, nunca somos o que a outra pessoa espera.

Além do mais, cada um de nós imagina uma pessoa perfeita à sua maneira. E essas pessoas "impecavelmente perfeitas" que imaginamos são todas diferentes umas das outras. Porque cada um de nós tem a sua ideia de perfeição. Em poucas palavras, a perfeição não é a mesma para todos. Se cada um de nós fosse Deus e tivesse que criar o mundo em seis dias (porque o sétimo foi de descanso!), cada um de nós teria criado um mundo perfeito à sua maneira, que seria, ao menos, ligeiramente diferente ou particular.

Nem Deus, que é perfeito, é o mesmo em todas as religiões ou na cabeça de cada um de nós... Pois é! Se nem Deus corresponde à ideia de Perfeição de cada religião ou pessoa, isso quer dizer que até Deus decepciona... E olha que Ele é perfeito... Mas o que dizer de nós, seres humanos, criados à Sua imagem e semelhança, xérox d'Ele?

As xérox, como sabemos, não costumam ter a qualidade dos originais...

Talvez perfeita mesmo seja aquela pessoa capaz de conviver com nossos defeitos e, mais do que isso, saber lidar com os seus. Passar por maus momentos e superá-los, ainda que não sejamos 100% perfeitos, não nos aproximaria da Perfeição de algum modo? Se agimos de maneira perfeita diante de um problema, ainda que sejamos imperfeitos, isso não nos aproximaria da Perfeição de alguma maneira?

Exemplo: Numa certa batalha, Napoleão tremia de medo com o barulho das explosões. E olha que era Napoleão! Um soldado notou e disse: "Olha como ele treme!" E Napoleão respondeu: "Posso tremer, mas estou aqui. Se você sentisse ao menos metade do medo que sinto, já teria fugido."

Essa é a perfeição possível. Esse foi o homem perfeito apesar de suas imperfeições. As pessoas poderiam ser assim no dia-a-dia, no trato com os amigos, os namorados, os parentes...

E, se você for 99% defeitos e 1% qualidades, não se contente em esconder esses 99% de defeitos, deixando-os por "detrás das cortinas", porque mais cedo ou mais tarde esses defeitos se revelarão ou a cortina cairá. Procure vencê-los. 


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sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Amor é fogo que arde sem ver, de Camões

Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que se ganha em se perder.

É um estar-se preso por vontade;
É servir a quem vence o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade
Se tão contrário a si é o mesmo amor?

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

No olhar

Mesmo sem pronunciares palavra,
Posso muito bem entender-te.
Tenho olhos de compreensão
Para teus olhos de saber dizer.

De onde estás,
Diz em silêncio teus ais,
E de onde estou
Já te acalentarei um pouco:
Teus olhos, nossos olhos,
Eles formam uma ponte,
Abraçam-se no ar,
Constroem castelos
No espaço entre os corpos.

No olhar,
Há mil palavras de um dicionário particular,
E tudo se diz desse modo,
Fora do léxico, do vernáculo.

E assim olho para ti
Em busca de teu discurso.
Meus olhos são ouvidos
Para teus olhos que são boca.

No olhar,
Há mil dizeres escondidos,
Escritos com a alma.
Ou, ainda,
Com alma e coração.

Os teus olhos, os nossos olhos,
Eles formam um diálogo
De saber ouvir corações
No silêncio dos colóquios.

Teu olhar, nossos olhares
São seres que se abraçam
Na intimidade do silêncio,
Na extrema ausência do toque.

Para teus olhos de saber dizer,
Tenho olhos de saber ouvir
E já há, entre nós, um segredo
Dito no ar,
Que só pode ouvir
Quem sabe olhar.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Tabacaria, de Fernando Pessoa


Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho genios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, para o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei que moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheco-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

                                                                                      Álvaro de Campos

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Ela já recolhe as pequenas alegrias

Ela já recolhe as pequenas alegrias
Do seu dia-a-dia
Para enfrentar a grande dor de todos os dias.

As coisas acontecem
E algumas não ficam para trás.
O tempo transcorre e não leva consigo
Tudo o que trouxe.
E o que devia ter passado,
Não passa:
Arrasta-se ao longo dos anos.
E o Passado alcança o Presente
Mantendo vivo o que devia estar morto.

Há uma grande dor a vencer
E uma menina quebrando o gelo
De um inverno que ela mal suporta.
Aos poucos,
Rompe-se o "iceberg"
No mar de todas as coisas
Enquanto outro
Se forma acolá, mais adiante.
E rompe-se aos poucos,
Porque ela não possui forças para parti-lo de vez.

E ela já recolhe as pequenas alegrias
Do seu dia-a-dia
Para conter a grande dor de todos os dias.

Penso nela e compreendo,
Desvendo o exemplo:
Não há força para vencer,
Mas resistir
E talvez avançar um pouco
Contra aquilo que é gigantesco,
Maior que nós.

Vençamos outro dia
O que não podemos derrotar hoje.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Amor ao fogo

Não busques amor
Para depois buscares felicidade.
Não separes o que deve ser
Uma só coisa.

Amando, não sejas melancólica,
Porque não estarás desse modo amando.

Não sejas falsa com o verdadeiro Amor,
Não o chames assim
Se não há felicidade em ti.
Amor e felicidade coincidem
Quando amar é verdadeiro.
Não busques uma coisa de cada vez,
Porque acharás as duas atadas.

Teus olhos devem abrir
Para um sonho acordado.
Não te iludas:
Se já estás amando,
Não feches os olhos para sonhar,
Porque não estarás desse modo amando.

Amor é palpável, real.
"Amor é bom, não maltrata".
Amor não impõe condições.
Teu coração amará a outro ser
Da maneira que ele for.
Não o queiras de outro modo
Para que depois o ames.

Amor é honesto, sincero.
Amor ao fogo,
Derretido e limpo,
Não revela tristezas.