Marta apresentava sintomas de transtorno bipolar, mas durante muito tempo ninguém sequer suspeitou de nada. Levou-se um bom tempo até que começassem a questionar a saúde dela, ainda que começassem por outras possibilidades. O romance “Marta”, da Editora Schoba, foca bastante nessa questão, na diferença que pode haver entre aparência e essência. Por que a maioria de nós só enxerga claramente a primeira? Em outras palavras, por que há tantos deprimidos e bipolares não-diagnosticados?
Se aparência e essência coincidissem, como disse Marx, a ciência seria desnecessária.
É justamente porque a maioria das pessoas não consegue distinguir felicidade de uma crise eufórica, que o médico deve entrar em campo para aclarar as coisas. É exatamente porque a maioria das pessoas não consegue ver a diferença entre tristeza e depressão, que o médico deve dar o seu parecer.
Se lembrarmos que os bipolares levam, em média, dez anos até que recebam o diagnóstico correto, poderemos dizer que as pessoas leigas, durante uma década, confundem euforia com alegria se elas têm um familiar ou amigo bipolar. Ou confundem depressão com tristeza. Se as pessoas leigas realmente pudessem distinguir aparência e essência, o médico não seria necessário para dar o diagnóstico, isto é, a ciência seria desnecessária para dizer se alguém é bipolar ou não.
Mas aparência e essência nunca coincidem. Sempre é preciso mostrar às pessoas o lado oculto das coisas.
Num mundo superficial, onde as pessoas desdenham a essência e valorizam a aparência, quem se importa em conhecer o outro a fundo? Basta parecer. Ser é desnecessário. Se alguém está deprimido (se alguém sofre de depressão) o que acontece? Ao primeiro sinal de depressão, provavelmente o deprimido ouvirá: "Ande, ponha um sorriso nessa cara. Não deixe que pensem que você está infeliz. Não dê aos outros esse gostinho." E começa-se a encobrir uma depressão (monopolar ou bipolar) que já está aí para quem quiser ver...
Desse modo, se não temos sequer o direito de estarmos tristes porque a felicidade é uma obrigação, o que se dirá de estar deprimido? Se nem a tristeza, que é um sentimento, é aceita, o que dizer da depressão, que vai muito além de uma tristeza passageira?
Um deprimido que se esforce em parecer bem, que foi ensinado a vida inteira a aparentar bem-estar, é o mesmo deprimido que fugirá de um psiquiatra ou psicólogo como o diabo da cruz. Ninguém está livre de sofrer de depressão, nem mesmo aqueles que, durante uma vida inteira, puseram na cabeça que devem parecer felizes o tempo todo, a todo custo, especialmente quando não estão felizes...
Além do mais os familiares, que são as pessoas mais próximas, em vez de serem os primeiros a notar algo, geralmente são os primeiros a “maquiar” os sintomas do enfermo. Os familiares, de modo geral, são os primeiros a dizer: "Melhore essa cara. O que os outros vão pensar? Anime-se, você não tem motivos para estar triste. Deixe de ser bobo."
Mas afinal: Quem, em boa e sã consciência, inventa uma doença? Depressão é doença e não se cura com repreensões, nem com palavras de ânimo. Se realmente temos diante de nós um caso de depressão monopolar ou bipolar, isto tem que chegar a um consultório médico...
Mas, de modo geral, só quando algo realmente grave acontece é que um profissional é consultado. Com algo grave quero dizer uma tentativa de suicídio, um acidente sério, um longo período de sofrimento moral que se tornou insuportável devido a um incidente recente como o fim de um casamento ou a perda de um emprego. Só em último caso, um profissional costuma ser consultado. Só no último minuto do segundo tempo, quando tudo é uma emergência, um caso de vida ou morte, é que geralmente se recorre a ajuda profissional... E o médico tem que fazer milagres de última hora... Mas ele não faz mais do que o esforço humano é capaz...
Só em último caso, costuma haver ação em vez de negligência ou "desatenção" se ainda existe tempo para fazer algo, porque às vezes, infelizmente, não há...
Eu lhe garanto: Você não precisa sofrer à toa se você pode receber o tratamento adequado e ver-se livre dos sintomas, tendo uma vida normal ou praticamente normal. Não deixe que a doença, nenhuma doença, avance se você pode combatê-la, vencê-la ou anulá-la. Não espere que os sintomas se tornem graves, não deixe o tempo passar até que você consiga ver a diferença entre essência e aparência. Se esse dia chegar, significa que você poderia ter consultado um profissional antes. Não somos nós que temos de ver a diferença entre essência e aparência, não somos nós que temos de dizer "Tenho depressão, vou ao médico" ou "Tenho TAB, vou ao psiquiatra pedir que ele me prescreva remédios e volto já". Se você é leigo, não é você quem deve reconhecer os sintomas e dar o diagnóstico!
As pessoas, de modo geral, se dão um diagnóstico e vão ao médico. Elas dizem "Eu tenho isto, eu tenho aquilo, vou ver o doutor". Mas espere um minuto! Não é justamente o doutor quem deveria dizer se temos isto ou aquilo?! Por que fazemos o papel dele se não somos um profissional da área?
O que nos compete é suspeitar, notar que há algo errado ou diferente, observar os primeiros sinais... Daí procuramos um profissional da área e perguntamos o que ele tem a nos dizer. Em poucas palavras, nossa parte é suspeitar, perguntar, procurar saber, justamente porque somos leigos e não sabemos nada a fundo. Não nos cabe ter certeza. O que nos cabe é a dúvida. E, se agirmos assim, estaremos fazendo o que poucos fazem para o seu próprio bem...
Apenas quando a diferença entre aparência e essência é abissal, demasiadamente grande para qualquer um enxergá-la, é que se procura um profissional. Mas não deveria ser o contrário? Não se deveria procurar um profissional ainda no início da depressão ou do TAB, quando só mesmo um psiquiatra ou psicólogo é capaz de ver a diferença entre alegria e euforia ou entre tristeza e depressão? Não é para isso que os profissionais costumam saber mais do que os leigos? De que nos tem servido toda a ciência? Parece que de nada ou de muito pouco...
Os avanços no tratamento do TAB deram um salto bastante grande nos últimos tempos, especialmente nestes últimos 15 anos, mas ainda pensamos com os mesmos preconceitos de décadas, séculos atrás, e nos comportamos como na época em que a ciência podia pouco ou quase nada. Como cientistas, avançamos muito. Mas, como pessoas, evoluímos infinitamente menos. Infelizmente menos... Afinal, quem está investindo em nossa parte meramente humana? no que pensamos ou sentimos? A Medicina que aí está, diante de nós, pode ser avançada ou moderna, mas os olhos com que a vemos ainda são velhos...
Se só se procura por um profissional em último caso, é porque chegou-se a um ponto em que até os leigos podem ver a diferença entre aparência e essência. E isso é mau sinal. Esperou-se demais, ainda que nunca seja tarde para começar a agir se o enfermo continua respirando...
De modo geral, é preciso esperar que alguém tente suicídio para se falar em depressão. Mas acontece que nem todas as tentativas de suicídio são falhas. Algumas são levadas a cabo com 100% de eficiência... Deveríamos nos antecipar a essas tentativas, buscando o diagnóstico correto e o tratamento adequado desde cedo. Quanto antes, melhor.
Por regra, não só quando falamos de depressão e transtorno bipolar, mas de doenças mentais em geral, há essa negligência ou negação, essa desinformação ou essa espera para agir. Geralmente é preciso que algo grave aconteça para que um bipolar olhe um psiquiatra nos olhos... Será realmente preciso sofrer ou arriscar a vida antes de buscar ajuda profissional? Por que esperar tanto? Se não for nada, melhor ainda... O que temos a temer?
São dez anos, em média, até que o diagnóstico correto de TAB venha. Dez anos de sofrimentos desnecessários. Tudo porque poucos são capazes de ver a diferença entre aparência e essência desde o início e, quando começam a vê-la, eles a negam. Negam até onde é possível negar. E às vezes, quando já se tornou impossível negar, é tarde demais para voltar atrás...
Vivemos de aparências, e ninguém deve parecer deprimido ou bipolar, muito menos sê-lo. Vai-se ao médico cuidar do corpo, mas ninguém vai ao psiquiatra cuidar da mente. Vai-se à academia malhar, mas ninguém vai ao psicólogo. Ai de quem for! O preconceito pode ser enorme. Mas deveríamos deixar que os outros (os comentários dos outros) rejam nossas vidas?
Quem vai a um psicólogo, procura fazer isso em segredo. Quem vai ao psiquiatra e não pode esconder isso dos demais, diz que foi ao psicólogo. Ninguém diz que foi ao psiquiatra, quase ninguém o diz. Daí que muitas pessoas explicam: "Meu psicólogo me receitou esses medicamentos de tarja preta. Eu nem precisava deles. Bobagem." Como se os psicólogos receitassem os medicamentos mais poderosos do mercado! Como se os psiquiatras não existissem!
As pessoas necessitam de ajuda, mas elas se preocupam com aquilo que os outros vão pensar, com as fofocas a evitar, com os preconceitos que podem sofrer, e a consulta médica vai ficando cada vez mais distante... Porque, ao que tudo indica, é mais importante parecer são do que ser são. Não negarei que esse seja o nosso mundo, mas será que esse precisa ser o seu mundo?
Quem se trata e anula os sintomas da doença, seja depressão, seja TAB, corre o risco de ser chamado de louco, mesmo levando uma vida normal, se por acaso assumir a doença publicamente. Mas quem sofre de depressão ou TAB em segredo, sem se tratar, é uma pessoa perfeitamente normal para as outras, mesmo apresentando todos os sintomas. Afinal, quem é capaz de ver a diferença entre aparência e essência?
Faça algo pela sua saúde. Quem lhe quer bem, mesmo que não saiba o que é depressão ou TAB, procurará entender e apoiá-lo. Quem não lhe quer bem ou finge que quer, não procurará entender. Não se preocupe com estes últimos. Principalmente, não sofra por estes últimos.
Se você precisa de ajuda, eu lhe desejo o melhor tratamento possível. Quem lhe quer bem, dirá que sua saúde vem antes de tudo. É o que eu digo a qualquer deprimido ou bipolar. É o que eu tentei dizer através de “Marta”...
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O que os leigos deveriam saber sobre bipolares
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Texto próprio, publicado originalmente em outro blog.
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