Comecemos com um bipolar do tipo I, mas aquele que passa necessariamente por fases de mania e de depressão e períodos de vida normal.
Imagine que alguém experimente: 1) uma fase de humor elevado que dure pelo menos uma semana, podendo durar meses; 2) uma fase de humor deprimido que dure ao menos duas semanas, podendo durar vários meses; e 3) um período de vida normal entre essas fases, isto é, um período em que o humor não esteja elevado ou deprimido.
Basta que 1 e 2 aconteçam uma única vez, mesmo que entre 1 e 2 haja um período de vida normal de muitos anos, para caracterizar um transtorno bipolar. Mas quem notaria essas fases? Quem, percebendo-as, não buscaria justificativas para elas, como o fim de um casamento ou uma promoção no emprego? Quem ligaria uma à outra, especialmente se houvesse um bom intervalo de meses ou anos entre elas?
Além do mais, o humor elevado ou deprimido precisa de uma referência para que seja melhor apreciado. Os períodos de vida normal entre uma fase e outra são uma boa referência. O período de vida anterior ao aparecimento dos primeiros sintomas é ainda melhor, porque entre uma fase e outra pode haver alguns sintomas leves ou flutuantes.
Mas o que significa “humor elevado”? Vejamos um bom exemplo prático. Imagine uma garota tímida, medrosa ou que nunca se excede com homens ou bebida. Não seria estranho se ela começasse a ser muito desinibida, “corajosa” ou atrevida em situações em que, antes, não agia assim? Tampouco não seria estranho se este comportamento durasse uma semana ou mais, acabando depois? Provavelmente você encontraria justificativas corriqueiras para esse comportamento dela, mas realmente haveria essas justificativas? Como eu disse, ao “avaliar” alguém procure se lembrar de seus períodos de “humor elevado”, que talvez estejam afastados, no tempo, de seus períodos de “humor deprimido”.
Tenha em mente, além do mais, que “humor elevado” pode envolver não só bom-humor exagerado e excesso de energia, mas também irritação, dificuldade de concentração, distração fácil com o que acontece em volta, etc.
Mas como identificar o “humor deprimido” nessa garota tímida, medrosa, que nunca se excede? Como eu disse, leve em conta períodos de “vida normal” para que você tenha um ponto de referência. Ser tímida, para uma garota tímida, é normal. Fugir disso para muito mais ou para muito menos, durante um período considerável de tempo e depois voltar “ao normal”, já seria digno de nota. Por que o humor elevado ou deprimido duraria semanas ou meses, manifestando-se todos os dias ou quase, na maior parte do tempo, sumindo depois?
No humor deprimido, não procure apenas tristeza, mas também isolamento social; ideias relacionadas à morte, não necessariamente suicídio; ansiedade; sintomas físicos, como dores ou doenças, dos quais a pessoa observada não se queixava antes; etc.
Tanto no humor elevado como no deprimido, procure observar alterações no apetite, no sono. Pergunte-se o que muda na vida afetiva, social e sexual dessa pessoa quando você nota o humor elevado e o humor deprimido. A autoestima aumenta? Diminui?
Se identificarmos esses três períodos (de “humor elevado”, de “humor deprimido” e de “vida normal”), poderíamos nos perguntar sobre um diagnóstico de transtorno bipolar. Mesmo assim, ainda haveria muito para levar em conta. Duração e intensidade das fases, consequências na vida do paciente, ausência de certas outras enfermidades, etc. são pontos chave para dizermos se essas alterações de humor podem ser transtorno bipolar ou não. Porque nem toda variação de humor é enfermidade, e nem toda enfermidade caracterizada por variações de humor é transtorno bipolar.
Ainda assim, entre uma fase e outra, não há necessariamente períodos de vida normal. Para não falar de bipolares do tipo I que só experimentam fases de euforia. Neste último caso, já não veríamos períodos de humor deprimido. Nem todos os bipolares passam por crises de depressão.
Para terminar, devo ressaltar que neste exemplo estivemos falando de “humor elevado” ou “euforia” como sendo, necessariamente, uma fase de mania, para que este exemplo de bipolar fosse o mais fácil possível de identificar.
Ainda assim, mesmo escolhendo um exemplo mais “fácil”, devemos lembrar que as comorbidades não são nenhuma raridade no transtorno bipolar, e a realidade costuma ser bem mais complexa que este exemplo simples.
As comorbidades, para entendermos isto melhor, são doenças que aparecem ao mesmo tempo que outras, sem que um diagnóstico exclua o outro. Daí que, se um bipolar também sofre de TDAH, sobram poucos sintomas que só dizem respeito ao transtorno bipolar propriamente. Porque muitos sintomas de ambas as doenças são iguais. Em outras palavras, não seria impossível “enxergarmos” só o TDAH ao olharmos “distraidamente” para um bipolar que tivesse o TDAH como comorbidade.
No caso de bipolares do tipo II (agora estamos falando de fases de hipomania e de depressão), os períodos de “humor elevado” seriam menos notáveis, menos “visíveis”. E nem começamos a falar de TAB SOE, aquele em que os episódios são inespecificados, isto é, não se manifestam tão claramente, seja com respeito à duração, seja com respeito à presença de todos os sintomas.
Ainda que nem todas as variações de humor caracterizem uma doença, há variações de humor sutis capazes de caracterizar o transtorno bipolar ou outra enfermidade.
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