— Você viu — vai perguntando o taxista — o que aconteceu em Realengo?
Todo o mundo viu, mais de uma vez, porque a notícia é veiculada na TV dia e noite.
— Eu vi, foi horrível.
— Aquele atirador era louco!
— Na verdade, era esquizofrênico...
— Que nada! Era louco mesmo!
E a viagem prosseguiu. Jorge desceu na escola onde era professor. Deu aula como já fazia há 25 anos. Era seu último dia antes de se aposentar.
— Você viu, Jorge, o que aconteceu em Realengo?
Todo o mundo tinha visto.
— Você viu o que aquele psicopata fez?
— Vi tudo pela TV. Várias vezes. Mas sabe... aquilo poderia ter sido evitado.
— Como? O homem tinha um espírito mau no corpo, aquilo não se evita!
— Os jornais dizem que ele era esquizofrênico e estava sem tratamento há sete anos. Você sabe, é uma doença tratável...
— Que nada!
— Nenhuma doença mental deveria ser caso de polícia. Sejamos sensatos.
— Quê?! Esquizofrenia é desculpa. O remédio dele era uma bala na cabeça!
E em seguida soou o sinal. Jorge foi para a sua sala, deu aula. Os alunos não paravam de falar em Realengo. A aula não andava, não ia em frente. Jorge acabou falando com os alunos sobre o massacre.
— Vocês sabem o que é esquizofrenia?
Ninguém sabia. Jorge explicou, mas era como se não tivesse explicado, porque ninguém entendeu.
— Meu pai — um aluno ia dizendo — falou que não existe isso de louco não. Ainda bem que o policial matou o bandido.
No fim do expediente, na sala dos professores, houve bolo, refrigerante e cigarros. Jorge foi felicitado pela aposentadoria. Era um bom professor e dava aulas ali há mais de 16 anos.
— Obrigado — dizia Jorge, agradecendo os cumprimentos.
Na volta para casa, tomou novamente o táxi. O taxista era outro, mas o assunto era o mesmo.
— Você viu o que houve? Ele era louco. Tinha que ter sido morto há mais tempo. Um monstro, um bandido! E circulava por aí. O diabo que o leve...
Jorge tentou explicar que as doenças mentais devem ser tratadas, que tudo poderia ter sido evitado, mas suas explicações eram inúteis. Parecia que alguém já tinha explicado tudo a todos. Jorge, com sua experiência de 25 anos como professor, não conseguia explicar nada.
Jorge subiu as escadas, chegou a seu apartamento, ligou a TV. As notícias sobre Realengo se repetiam, sem novidades. As imagens que ele viu à noite eram as mesmas que ele havia visto de tarde, e as da tarde ele já tinha visto de manhã... As explicações também se repetiam, sem que nada ou quase nada fosse acrescentado. A palavra psicopata foi usada até a exaustão. O atirador era psicótico, não psicopata...
Jorge recebeu visitas. Não tinha milhões de amigos, mas tinha uns poucos e bons.
— Ah, Jorge! Se todos fossem gente boa como você! Aquele atirador era um demônio!
Jorge ia explicar pela milésima vez que o atirador era esquizofrênico e poderia ter sido tratado. A tragédia poderia ter sido evitada. Mas ele estava cansado, já havia tentado explicar isso milhões de vezes o dia todo, sem sucesso. Deixou pra lá e se contentou em sorrir...
Jorge se levantou, foi ao banheiro, tomou o seu remédio para esquizofrenia e voltou.
— Um monstro — dizia Jorge — um psicopata, um demônio.
Jorge já não tinha que explicar nada, agora concordava com todos.
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Para não dizerem que não falei de Realengo
Comentando o post da Maga, do Bipolar Brasil, sobre a tragédia de Realengo
2 comentários:
Oi Breno!!!
falar sobre tragédia é sempre conflitante, cada um pessoa de um jeito, eu procuro nem falar sobre o assassino, só lamento as vidas perdidas abruptamente... essas sim, não tem retorno!
Obrigada pela visita!
Triste pela ignorância do ser humano. Não os que não conhecem, mas o que não querem ao menos tentar!
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